top of page
Heyk Pimenta

Poesia é praça: fofoca, artesanato, esporte e quiromancia 

Atualizado: 27 de ago.




 

1


“Poesia não compra sapato/ mas como andar sem poesia?” Esse poema curtinho, do Emmanuel Marinho, era recitado pelo coletivo Poesia Maloqueirista na primeira década de 2000. Uma vez me perguntaram o que eu fazia pra viver. Respondi que dava aula. “Isso você faz pra ganhar dinheiro, mas o que você faz pra viver? Respondi: “Poesia”.

Durante bastante tempo quis viver disso, pagar as contas, no caso. Vendendo livro até estourar, virar um fenômeno; encartando livro de poesia num jornal; fazendo letra de música, me inscrevendo nos prêmios todos. Ganhei meia dúzia de cachês no começo dos anos 2010, ganhei dinheiro para pagar o aluguel vendendo poesia na rua, cantando em ônibus, vendendo pelo correio.

 

2


Em 2004, num domingo, minha mãe me levava de carro para Araras-SP, eu tinha 17 e trabalhava na Federal Mogul, metalúrgica estadunidense que fabrica peças de reposição para carros no mundo todo. Todo domingo eu saía de Artur Nogueira-SP e ia para meu quarto alugado em Araras, que ficava pertinho da Nestlé e tudo cheirava a café solúvel. Eu dividia casa com meninos e homens que estudavam na Uni-Araras, todos da área de saúde. Minha mãe me olhou e disse que tinha se enganado, ela não deveria ter estudado matemática, mas psicologia, porque gostava de escutar as pessoas, pensar saídas com elas. À altura, tinha 44 anos. Aqueles domingos eram melancólicos, me debatia entre quatro cidades da região toda semana. Quase na sequência, enquanto o carro estacionava, não me lembro da cor da casa, eu disse que queria ser escritor, porque poderia viver em qualquer lugar, escrevendo e mandando os textos para os jornais e revistas.

 

3


Quando resolvemos fazer a Oficina Experimental de Poesia, queríamos tirar a poesia da caixa preta, do gênio, do talento e aproximá-la do trabalho, do código aberto, do ofício do sapateiro ou do funileiro. Daí a principal ferramenta produzida por esse coletivo ter sido a “lanternagem”.

 

4


Chacal, um dos maiores motores da poesia no Rio de Janeiro dos últimos 50 anos, pegou um mundo terrível e riquíssimo. Não havia grana para poesia no início dos anos 1970. Se houvesse, não seria ele o contemplado, porque uma coisa nova estava sendo gestada nos seus mimeógrafos. Ainda não era considerado poesia. As plaquetes vendidas nas saídas dos shows e do cinema serviam para pagar a passagem, para levá-lo para fora da ditadura, para outras tramas e transas. O mesmo Estado que não financiava a poesia, caçava os poetas. Como trabalhar com um cachorro no seu encalço? Para o Chacal, fazer poesia não é trabalho, trabalho massacra, é coisa de careta, é coisa para fortalecer o capitalismo. Lavorare stanca. Já a arte, liberta.

 

5


Cláudia Roquette-Pinto foi chamada de hermética, acusada de não ter virtude intelectiva, elitista pelo material com que trabalhava, “nem parece que você mora no Rio de Janeiro, mas numa torre de marfim”. Contra as acusações, Cláudia arrisca: “Primeiro, eu era casada. Esse é um dado de realidade. Você ser mulher, poeta, burguesa, branca, casada, com filho, você não escreve tudo o que quer. Combinado? Não escreve. Você, para escrever, desvia, vai rodando, vai de ladinho, tem uma coisa repressiva qualquer que impede o lugar da poesia, que é o lugar do desejo, é uma coisa crua. O desejo tem que estar muito vivaz, tem que ser muito corajosa para entrar em contato com aquilo, abraçar aquilo com tudo. Aí quando você tá casada, você é uma mulher, é mãe de filho… alguém pergunta: Mas seu filho vai ler esse livro?”

 

6


Hoje mesmo, Salgado Maranhão me disse que fazemos poesia e fazemos isso por ela, pela poesia mesmo, porque sabemos que temos um propósito, que isso é por um motivo maior. Se não tiver passagem de avião, eu vou a pé, disse Salgado. Uma postura abdicativa para com esse trabalho. Muita gente espera isso, por exemplo, dos profissionais da saúde, ainda mais dos professores, um relação de santidade com a profissão. Como se eles não precisassem de dinheiro. Mas como andar sem poesia?

 

7


Eu também tenho dito por aí que a poesia é como se fosse uma igrejinha para mim, onde me conecto com minha comunidade e identidade. Como numa missa ou numa obra paroquial, dedico as horas que posso a ela sem pedir nada em troca. Nem eu acredito nisso.

 

8


Os punks faziam fanzines, aprendi com eles. Eles vendiam na rua. Não aprendi com eles. Não gostava da coisa ostensiva. Mas encontrei gente que sabia vender com a elegância do padeiro que passa de bicicleta na frente da sua casa: “Trouxe pão, tá quentinho! Vai querer pão hoje?” Oferecer o que se tem de melhor. Ganhar dinheiro com isso. Giovani Baffô, sábio em tudo, vendia: “Compra meu livro, moça, você vai se dar bem”, era uma promessa. “Estourei com esse livro aqui, amigo, tá bom demais, pode levar. Esse é bom”. A dignidade do caixeiro viajante. Existe? A dignidade do seu Darcy, que parou diante de mim e da Anele com uma mula rajada e, lá do alto, tirou dois queijos maciços e curados de dentro de um balde de plástico coberto com um pano de prato: “Vai comprar queijo hoje?”. Vamos sim.

 

9


A especialização, a gestão de conteúdo, a mentoria para escrever projetos, as oficinas, a assessoria de imprensa, o jogo entre trabalhar de graça, muito, e não achar justo fazer os amigos trabalharem de graça com você, nem para você, dedicar o tempo a entender como se comunicar com editores, com youtubers, com críticos, com outros escritores, ser o embaixador de um país pobre e desconhecido, atuar na cracolândia das artes, olhar o email, o instagram esperando uma mensagem que acalente, ficar com medo de ter perdido o trem do futuro, acompanhar as revistas, as páginas, os perfis, usar a tática dois sem querer, seduzir, encantar, parecer um malandro, um carrasco, um coelhinho, um neném, um acelerador de partículas, ser a coisa mais esquizoide do mundo, tudo isso a depender do gosto do freguês, do que se pode conseguir com isso, usar maquiagem, ir à tv, escrever pros conhecidos “tem trabalho aí?”. Todos os dias. Dá tempo de escrever?

 

10


Em 2007, no canteiro das obras de restauração do Museu Nacional de Belas Artes, enquanto eu firmava uma furadeira martelete de 7kg contra uma das colunas da fachada, conheci Luz Macalé, poeta e servente de pedreiro, na época com 60 anos e uma fama por falar muito bem seus poemas em palcos de sindicatos pela baixada fluminense, “desde as diretas já”. Ele me disse que dava sim pra viver de poesia, dependia da verve do poeta.

 

11


Mexer com a poesia pensando em trabalho é bem joia e vem acompanhado de uma ambiguidade, no mínimo. Voltando à Oficina Experimental de Poesia, percebíamos que a energia empenhada para manter o coletivo em pé era tão grande ou maior do que a para tocar o trabalho individual com poesia ou até para realizar as ações da Oficina. O tempo das relações, o trabalho exigido pelas relações, esse é volumoso.

 

12


Quando vi o perfil @palavratrabalho no instagram fiquei pensando que a Gabriela Perigo coloca muita coisa boa pra rolo. A Gabriela flerta com os modos de fazer: o primeiro livro foi feito à mão, impresso em uma gráfica ocupada. Uns anos antes, ela era articuladora do coletivo Norte Comum e aluna no Colégio Pedro II. Muito rápido a vi testar poemas, colagens, sobreposições via hotglue.me, era uma confusão inteligente, imagens que nos oferecem o risco de passarmos batido. Textos. Oficinas vieram daí, outras vieram de outras coisas. Tem um negócio da obra total quando a Gabi trabalha. Pensando formas de vir a público. Nesses dias ela inventou que fará 1500 nãos. Assinados. Vendidos por 11 reais. Na última semana, mandou avisar que vai vender poemas escritos à mão, individuais, pra você ter em casa.

 

13


Sabemos que toda transformação intencional da natureza causada pelos seres humanos é trabalho. Até fazer merda é trabalho. Mas talvez o trabalho mais difícil, provavelmente o que nos fez humanos, foi nos mantermos em comunidade. Os membros do coletivo Dolores Boca Aberta, na zona leste de São Paulo, atuam nas duas frentes, premiados com o Prêmio Shell por um lado, mas não têm sequer constituição jurídica, seus membros são professores, quadros de movimentos sociais, assessores de vereadores de esquerda, poetas. A sede é uma ocupação em um terreno dos antigos Clubes da Comunidade, projeto descontinuado pela Prefeitura da Capital.

 

13.1


Ao lado do galpão reformado e equipado pelo Coletivo, jogam bola trabalhadores paraguaios em um dia, bolivianos em outro. Organizam-se assim por segurança. Mas em junho estavam todos pintando a quadra, em revezamento ou juntos, inclusive os Dolores, que não usam a quadra. Nenhuma das várias ocupações do espaço se comunica muito, mas estão ali, juntos.

 

13.2


Agora tem um contêiner na frente do terreno, é a Biblioteca Vento Leste de Poesia, quem toca é o poeta e educador popular Tiago Mine, que conheci vendendo poesia na rua, ele e eu. Dentre as muitas, ele leva autores ao espaço uma vez por mês para lerem seus livros na íntegra, se chama Sarau do Livro Inteiro, um irmão da Balada do Livro Inteiro, que acontece no Rio de Janeiro.

 

13.3


Bom, como vivem? Vivem de suas outras profissões e, há 25 anos, tocam o Dolores, sabe deus com que força, mas também de leis sólidas e estruturadas de fomento à Cultura, São Paulo tem. Ao mesmo tempo, a depender delas, parece que nenhum artista pode ganhar mais de 3 mil reais, me disse a Erika Viana, fundadora do grupo. Perrengue para lá, perrengue para cá, há uns cinco anos, os integrantes da Cia compraram um terreno em Guaianazes, apelidaram de Comuna, racharam o preço e agora estão terminando suas casas, a maioria já dentro delas com bichos e filhos.

 

14


Como os outros ofícios artesanais, fazer poesia, como disse Silviano Santiago, exige do poeta que aprenda o ofício. Fazer poemas como quem faz sapato, vigas, como quem pinta os rococós das carrocerias de camionetas e charretes. Acontece que esses ofícios não podem concorrer com a produção em massa, então se tornaram bibelôs para ricos, dada sua escassez; objetos que conferem sentido para suas comunidades; ou gambiarras produzidas pela pobreza. Para quem quer trabalhar, artesão?

 

15


Os beatniks davam só o trabalho braçal para o capitalismo, topavam trabalhar em barcos de pesca, não em escritórios. Cada realismo socialista promoveu a sociedade que queria ver dentro dos poemas. Muitos dos nossos poetas, na ausência de herança, foram para as universidades, as embaixadas, para o funcionalismo. Nós, poetas de gabinete. E quanto tempo sobra para escrever?

 

16


Os bate-bolas não ganham edital e nem vivem de fazer as suas fantasias. Os reisados, os congados duram um século, ninguém ganha nada com isso. Mas ganha. Cada viola de cocho, cada tambor esticado, cada chapéu de fita sobrevive como festejo, mas é constituído de trabalho, dedicar trabalho à comunidade deve ter algum feitiço. Um jogo que atualiza as coisas.

 

17


O canto mais bonito do samba do Didi, em Recife, é de um baixo profundo que encosta a carrocinha de balas no depósito ao lado antes de começar o set.

 

18


Talvez só seja possível profissionalizar aquilo que tem saída na vendinha. Todas as outras coisas são feitiço, ou jogo.

 

19


Quem deseja o que você fabrica?


 


heyk pimenta para outras paradas

13 de agosto de 2024

386 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page