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O Sentinela da Cavalaria Cristã e o General da Um-Banda: Os laços inquebráveis de um rito popular em festa





Lua de Ogum

Não deixe em momento algum

Meu samba na escuridão

Zeca Pagodinho / Ratinho




Fontes históricas de tratados religiosos dizem que o martírio de Jorge da Capadócia pelos romanos se deu na Palestina (em Lydda, terra natal de sua mãe e local próximo onde houve a batalha de Perseu). Lá, uma suposta sepultura com seus restos mortais foi achada em 1868. Mas foi o Conselho de Oxford que, em 1222, decidiu que a celebração do cavaleiro santo seria no dia 23 de abril, data proclamada como o dia de nascimento e também o dia de sua morte, após apenas 20 anos de uma vida marcada por provações e desafios dignos de um herói romano decapitado. É essa trajetória atribulada que foi sendo narrada desde os tempos remotos pelos quatro cantos do mundo e com muitos adicionais dentro da hagiografia de Jorge. O que não falta sobre os santos e seus augúrios são histórias. Acreditar é uma questão de fé ou da própria ausência de provas irrefutáveis.


Além da devoção dos ingleses, Jorge é padroeiro da Catalunha, ou seja, entre anglicanos e católicos a adoração é partilhada. Essa influência se estende para áreas que envolvem retidão e disciplina. Baden Powell, o fundador dos escoteiros, dizia que São Jorge era o totem do escotismo universal. Paraninfo das Forças Armadas no Brasil com honras de oficial de exército nos tempos do Império, sua patente militar é alterada conforme os tempos ou o toque dos tambores em ritos afro-brasileiros. Ele tanto pode ser o “General da Banda" como cantado no ponto de terreiro que virou sucesso do Carnaval de 50, ou ter uma insígnia dupla, como saudado em outro ponto famoso pra Ogum que diz: “Auê General Guanabara / Auê Capitão Marambaia”. 


Repare que a transposição da geografia natal de Jorge, das terras da Palestina e da Capadócia (banhadas pelo Mar Morto e pelo Mar Mediterrâneo) para solo carioca não é desfigurada da presença marítima. As palavras de origem tupi “Guanabara”, seio de mar, e “Marambaia”, cerco de mar, são denominações para localidades que ficam entre a terra arenosa e o mar. Marambaia ainda possui um outro significado na linguagem portuária, que faz jus ao “marujo namorador que prefere viver em terra a estar embarcado”. Não à toa que, com esse histórico regional, o santo tenha sido sincretizado na linha de Ogum Beira-Mar. Nas estrofes desse mesmo ponto, “Auê General…”, também acontece a virada de Jorge pros “campos do Humaitá”, referência à batalha da Guerra do Paraguai, a mais longa participação do Brasil em combates militares na América do Sul. 


Coincidentemente, é na data do culto ao guerreiro santo que a primeira esquadra portuguesa foi fundeada em terras do Brasil. Em questões discutidas na historiografia, é sabido que a narrativa dos mitos de origens do passado foram de importância para a preservação da oralidade dos povos que, assim, puderam atravessar os séculos mantendo para as gerações futuras suas visões espirituais ou mesmo suas rotinas coletivas. Mas, hoje, se apegar a alguns dos mitos modernos de origens pouco ajudam a traçar um bom panorama das histórias que queremos contar.


Não tenho a pretensão, aqui, de documentar as origens da festa do dia de São Jorge e sua crescente popularidade nos festivais. Este texto buscar reconhecer, numa cronologia de um rito tão popular no país e principalmente na cidade do Rio de Janeiro (de São Sebastião), algumas das formas que nós, enquanto sociedade, criamos para manter nossas crenças sobre a vida e nossas noções religiosas. O dia do santo é celebrado em diversos lugares do Brasil, mas só na cidade do Rio de Janeiro temos um dia de feriado oficial pelo Estado.


As representações das festas nos terreiros (ao contrário das imagens católicas) ainda continham fantasias visuais baseadas nos preconceitos religiosos. Diário Carioca (RJ), abril de 1935
As representações das festas nos terreiros (ao contrário das imagens católicas) ainda continham fantasias visuais baseadas nos preconceitos religiosos. Diário Carioca (RJ), abril de 1935

Com que roupa eu vou? Pro samba que Jorge me convidou


A curiosidade que norteia esse texto é compreender, através do culto da imagem de Jorge, alguns pontos-chaves da lida do povo carioca com suas festas e aquilo que o torna parte de um cordão de pertencimento que se estende para além das beiradas da cidade, alcançando desde o Centro aos Subúrbios e Baixadas.


Seguir a trilha de um santo pomposo, armado com lança e vestido com armadura das Cruzadas que ronda os terreiros de Umbanda baixando num traçado da linhagem de Ogum, orixá senhor dos metais, requer mais pistas do que a nossa vã filosofia é capaz de suspeitar. 


Os botequins portugueses o adotaram em seu altar com vela e copo de cerveja. Pixinguinha, que nasceu na data do santo, é a personificação carioca do personagem com ar nobre e curtidor de esquinas e bares, tendo a flauta ou o sax como seu instrumento de batalha. Frequentava o Bar São Jorge, vizinho à sua residência em Olaria. Como músico do virar dos séculos XIX-XX, frequentou os terreiros e salões da cidade com a mesma airosa estirpe: sua morte se dá dentro de uma igreja. A sociedade carioca fez da subversão uma liturgia, via de regra. Nisso não há nada de novo, dentro das nossas artimanhas que quebram etiquetas, mas nenhum santo popular recebeu tamanha devoção e amor quanto a imagem de um salvador de donzela e algoz de dragão. A nossa afeição histórica por personagens de roupagem real e monarquista se mistura com a desobediência do guerreiro Jorge à rendição, quando confrontado por uma autoridade, preferindo o auto-sacrifício à negação de sua fé. 


Morrer decapitado no dia de seu aniversário aos 20 anos é um ato que o faz pronto para ocupar os maiores altares e honrarias dentro do imaginário de um povo que percorre igrejas e macumbas, ocupa trabalhos subservientes mas nunca perde uma chance de não abaixar a cabeça diante de um patrão. Ao mesmo tempo, também por aqui sua tradição de fiel ajudante das horas difíceis arrebanhou devotos em classes abastadas. Jorge sempre foi querido por figuras políticas da República de forma aberta, sem receios de parecer inapropriado aos bons costumes daqueles que trataram a religiosidade dos populares como meras crendices de iletrados. É aí que mora um dos seus mistérios. Afinal, a hierarquia da adoração ao santo começou por qual classe social? Pedirei essa resposta numa promessa lá em Quintino em breve, pois até o momento que escrevo essas linhas, nenhuma pista me foi dada. 


É certo que a Igreja possui desde tempos remotos o papel de oficializar seu elenco de santidades conforme os antigos Concílios em suas pautas e canonizações. Mas, mesmo com esse martelo de decisão, o que mais existem são santos e santas marginalizados em tomos empoeirados do Vaticano, cuja posição não lhes garante uma vela sequer de alguém que lembre os seus feitos e agonias pela misericórdia divina. Por que Jorge ganha a simpatia popular e um mar de canções em tributo ao seu suplício e a sua coragem? Caso o Brasil fosse colônia da Grã-Bretanha, a resposta poderia estar aparente. Mas o mistério aqui parece não querer se revelar. A figura jovem que mostra apenas a face por baixo do capacete de ferro exibe de modo ímpar a nossa contradição e complexidade mais representativa dentro do campo religioso popular. Justamente nessa fervura de santos rebeldes, povos escravizados e paisagens propícias para cenários de natureza épica é que talvez a gente possa manejar nossa caminhada.


Primeira imagem encontrada em jornais cariocas do interior da Igreja de São Jorge com a imagem em destaque junto aos devotos. Revista da Semana (RJ), abril de 1932
Primeira imagem encontrada em jornais cariocas do interior da Igreja de São Jorge com a imagem em destaque junto aos devotos. Revista da Semana (RJ), abril de 1932

A Paixão de Jorge


O santo é comandante de exércitos que lotam as duas principais igrejas consagradas em seu nome na cidade do Rio de Janeiro: a mais antiga, em frente ao Campo de Santana, e a segunda, surgida em 1945 no bairro da zona norte de Quintino. Na cidade que outrora saía às ruas para muito mais celebrações do que somente o Carnaval, Jorge não sofre de esquecimento por parte dos seus devotos mesmo após tantas transformações sociais e culturais. 


A confraria dos Gloriosos Mártires de São Gonçalo Garcia e de São Jorge foi a responsável por iniciar o culto em 1741. Só em 1753 teve uma igreja própria construída, a mesma que existe em frente ao Campo de Santana e que já passou por obras seguidas para abrigar a quantidade de devotos. Lá se encontra a única imagem em tamanho natural do cavaleiro santo no mundo. Mas, até o início dos anos 1930, o que temos são pequenas notas da imprensa que mais lembram da data do que contam algo da movimentação do povo para as igrejas. É só a partir dessa década que iremos ver uma cobertura mais atenta das procissões que caminhavam pelas ruas com a imagem do santo em desfile, o alto número de pessoas que compareceram desde cedo na esperança de tocar os pés da imagem consagrada, e até mesmo visitas de repórteres aos terreiros espalhados pela cidade no dia anterior para acompanhar as festas que só acabavam no amanhecer do dia. Até mesmo um hábito da época de pessoas irem com as vestimentas que cobrem o santo, incluindo roupas de montaria e capa vermelha, foram registradas. De lá pra cá, as coberturas dos jornais nunca mais pararam.


Seria isto um sintoma da projeção de uma figura revestida por ideais de nobreza como a companhia para melhor enfrentar as batalhas do dia-a-dia? Essa teoria cai por terra diante da imensa tradição de culto aos santos e santas que seguiram a cartilha da rejeição aos bens materiais do mundo, que se abstiveram de qualquer formalidade que não fosse a primazia da humildade e assim foram e são adorados pelos seus fieis ao longo dos séculos. O caso de Jorge, para além dessa visão de classes divergentes, é capaz de preservar seus poderes mesmo na sua condição de chefe de cavalaria e como guerreiro de experiência em campo, tornando-se uma ilustração daquele que pode ser o salvador de um povo que o clama quando em perigo. 


É assim que uma das narrativas o empodera. Conta-se que, ao chamado de um rei pagão que pode perder sua filha, Jorge salva o povoado da criatura cuspidora de fogo, um animal mítico do imaginário medieval na sua incrível simbologia enquanto uma mescla de bichos nocivos ao objetivo da humanidade em alcançar a divindade em si mesma. Jorge é um arquétipo daquilo que podemos ser quando estamos conscientes de uma posição que ultrapassa nossas pequenas inseguranças para o enfrentamento de seres animalescos (desejos materiais, puramente sexuais e de energias de baixa densidade) para alcançar o espírito de união divina. Essa figura está em diversas ilustrações dos antigos romances de cavalaria, dos quais Dom Quixote é um filho satírico, em que cavaleiros heroicos precisam vencer seus próprios pensamentos para chegar ao destino que lhes cabe. Esse destino se lê nas cartas do tarot, nos jogos de cartas que lhe deram origem e, por que não, também no jogo do bicho. Dentro do imaginário dos animais do zoológico da Vila Isabel, a figura humana não é uma opção de aposta, mas é a própria configuradora da jornada entre os animais a partir dos seus sonhos e palpites que abrirão os portões da fortuna e da sorte caso suas escolhas sejam sensíveis e acertadas. A função da psique dentro do campo subconsciente está atuando da mesma forma que o cavalo pelo tabuleiro das peças do xadrez.


A Dupla Imagem do Santo


A imagem clássica do santo foi feita pelo renascentista Raphael Sanzio por encomenda do Duque de Urbino e oferecida ao Rei Henrique VIII da Inglaterra como agradecimento pela iniciação do Duque na mais antiga e prezada ordem de cavalaria inglesa. É essa ilustração que serve de base aos folhetos e quadros reproduzidos fartamente desde então. Mas Raphael criou duas imagens de São Jorge e o dragão, ambas datadas entre 1505-1506. Os símbolos estão em perfeita harmonia com as personalidades masculinas que andavam a cavalo em busca de aventuras em terras obscuras povoando a cultura europeia de então.


São Jorge e o Dragão - Raphael (1505-06)
São Jorge e o Dragão - Raphael (1505-06)

A cabeça da serpente, a cauda longa e as asas negras dão a aparência de um grifo sombrio saído de uma caverna, enquanto Jorge monta um cavalo branco de porte magnífico. O animal representa a pureza e santidade imbuído naquele que está sobre ele, e seu olhar está voltado exatamente para quem observa a imagem. No primeiro quadro, é o cavalo que nos olha com uma face entre o espanto e a certeza da vitória. A espada do guerreiro está guardada na bainha da cintura: o que é utilizado contra o dragão, curiosamente, é uma lança de madeira, que parece muito mais tentar afastar o monstro do que exatamente eliminá-lo. Já na segunda imagem, o ataque do cavaleiro é fatal, pois a espada em mãos mira o dragão que se aproxima da sua perna numa cena com perigo iminente. Ao fundo da tela, a princesa é vista em seu vestido esvoaçante. A “anima” do cavaleiro está em fuga ou à espera do encontro de conjunção? Na alquimia as histórias não terminam com “felizes para sempre” mas sim com o despertar da consciência interior.


São Jorge e o Dragão - Raphael (1505-06)
São Jorge e o Dragão - Raphael (1505-06)

Se há quem veja Jorge na morada da lua, há os que veem o número 43 numa das patas do cavalo. É a dezena do jogo do bicho que reina no dia do feriado santo. Ou as dezenas do jacaré, como referência visual mais próxima ao dragão morto em combate. 


Segundo foi possível apurar através de notícias em jornais cariocas colhidas entre 1930 e 1969, o ano de 1957 foi a primeira vez que o prêmio deu na cabeça. Um coice que feriu muitas bancas pela cidade afora. Mas, como bicheiro não dorme no cavalo, as premiações para essas dezenas em dia de Jorge já haviam sido taxadas apenas pela metade da cotação a ser paga aos insistentes jogadores. A lei segue até hoje. Existe algum dia que quebre a regra dos bicheiros além daquele do santo mais popular? Desconheço outro exemplo.


Deu cavalo na cabeça - Diário de Notícias (RJ), abril de 1957
Deu cavalo na cabeça - Diário de Notícias (RJ), abril de 1957

Ausência de violência é a homenagem ao santo que guerreia


Se há algo incomum numa cidade de conflitos tradicionais em festas de grande movimentação, feitas em deslocamentos nas ruas através dos bairros, é a suspensão dos atos de violência. No feriado de São Jorge, parece que a não-violência é mantida como preceito. Não estou falando de pequenos furtos, ou mesmo confusões breves que podem surgir em uma birosca ou numa aglomeração pontual. Historicamente, temos exemplos de sobra na nossa forma de lidar com o corpo em momentos de fluxos sociais e da sensação de liberdade que certas festividades causam, por fatores próprios a cada rito. No Carnaval, a violência é intrínseca, pois é uma festa de excessos. A velha Festa da Penha, que depois do Carnaval era a maior celebração popular da cidade até os anos 1960, era local de bebedeiras homéricas do povo e da malandragem do sambistas, maltas de capoeiras que gostavam de provocações e uma boa troca de sopapos e rasteiras. Mas no dia de Jorge ninguém quer provar nada além da sua devoção. Mesmo que vistam as armas de Jorge, os homens não as apontam e nem procuram seus inimigos.


Esse pedido está implícito na sua oração repetida como refrão pelos necessitados. Os versos não rogam por um gesto de violência contra os inimigos, mas tão somente que nos torne invisíveis diante de qualquer ameaça ou mal que periga estar por perto ou em nosso caminho. Uma chamada de ajuda perante as adversidades e o aparecimento vulgar de qualquer violência que venha dos outros. É uma prece de comunhão e busca por uma unidade: tornar-se uno com os melhores atributos que as roupas e as armas mágicas do guerreiro são capazes de nos carregar. É o mesmo axé que guarda em sua planta-espada nos muitos quintais, canteiros e até mesmo atrás das portas, o de espantar aqueles que têm por objetivo nos trazer o mal.


A ferradura, força do seu ginete, também já foi muito usada em portas de casas suburbanas, mas hoje é um hábito mais restrito às casas de santo. Perdemos nesse hábito uma força magnética, vinculada a uma corrente de energia, ótima para afastar visitas negativas e maledicentes. Qualquer ferramenta de metal possui o alcance do cavalo de Jorge e pode servir de amuleto em locais de passagem de muitos visitantes.


Assim Ogum dança em paz no campo de batalha, mas quem seria besta de guerrear com o orixá dos ferreiros? No dia do seu nascimento e morte é Jorge que cruza as ruas em galope ritmado entre os clarins dos bombeiros que anunciavam a alvorada, hoje somente feita por fogos de artifício, e o bater dos ponteiros à meia-noite nos centros de Umbanda que tocam as cantigas de chegada e subida para louvar aquele que cada vez que mata o dragão vence a batalha contra si mesmo. Essa tradição acontece há tanto tempo que já não há porque saber a origem de um rito tão popular. Só sabemos que ele é a potência imagética da cidade que assombra qualquer um que não tenha a proteção do cavaleiro e do seu escudo sob as costas. O santo imortalizado não em sua hora de morte (lembremos de São Sebastião, padroeiro da cidade e sua imagem mortal cravejada de flechas) mas em seu ato de bravura. O Rio de Janeiro continua sendo a cidade preferida dos seus passeios e com a cavalaria sagrada sempre de prontidão. 



Quem tá de ronda é São Jorge,

Deixa São Jorge rondar.

Oi, São Jorge é guerreiro, 

Ele ronda na terra, ele ronda no mar

Ponto de Ogum


Representação de Ogum Beira-Mar
Representação de Ogum Beira-Mar


Marcos Nascimento para o blog da escola. As referências para a escrita desse texto foram os jornais cariocas disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira no período dos anos 1930-1969.

 
 
 

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