escrever como quem regressa à casa

escrever como quem regressa à casa
notícias sobre o segundo módulo da desvio
por Julya Tavares
“a viagem mítica por excelência, o mito mesmo da viagem, tem por nome Odisseia”.[i] é assim que Barbara Cassin, filóloga e filósofa francesa, começa o texto “a Odisseia e o dia do retorno”, publicado pela primeira vez em 2011. nele, Cassin dá a ver as relações entre o mythos e o logos a partir da leitura em comum de Homero. assim, se na tradição do pensamento ocidental o logos, ligado à filosofia e à verdade, se opõe ao mythos, ligado à ficção e à poesia, as metáforas (mythos) que constituem o poema de Homero atam “as duas grandes maneiras gregas de falar”,[ii] porque passam ao conceito (logos).
o texto de Barbara Cassin foi uma das leituras que fizemos no segundo módulo da formação desvio, “escrever contemporâneo 1: presente e passado”. conduzido por Marcelo Reis de Mello, esse segundo momento do curso propôs reflexões a respeito da noção de tempo na poesia. para isso, tomou como referência teórica, ainda, o famoso ensaio “O que é o contemporâneo?”, de Giorgio Agamben, que não por acaso formula uma ideia de contemporaneidade também a partir de uma metáfora, a do século-fera, de Osip Mandel’stam, que se revela aos olhos do eu lírico com o dorso quebrado. para o filósofo italiano, o poeta é, ao mesmo tempo, o que impede a composição do tempo fraturado, dissociado, e o sangue capaz de suturá-lo. no poema de Mandel’stam, o século-fera aparece, ainda, tentando se virar para trás. apesar do dorso quebrado, ele tenta contemplar as próprias pegadas e, por isso, mostra um rosto demente.
a partir, então, da metáfora do regresso elaborada por Homero na figura de Ulisses, herói da Odisseia, mas também da imagem do século-fera, de Osip Mandel'stam, passada ao conceito por Giorgio Agamben, aprendemos duas lições: 1) escrever como quem regressa à casa; 2) perceber o próprio século, o próprio tempo, como uma fera com o dorso quebrado, fraturado. em última instância, e quem sabe atando as duas pontas das lições, escrever como quem está fora, seja de casa ou do tempo. em seu ensaio-conferência, Cassin mostra como os fragmentos de mythos da Odisseia fazem conceito a partir da nostalgia, do enraizamento, do reconhecimento e do tempo do retorno como “ainda não”. para a filósofa francesa, a nostalgia é o que faz com que Ulisses escolha voltar para casa, ainda que isso signifique encarar o tempo. Agamben também se refere à nostalgia ao discorrer sobre a ideia de contemporaneidade em seu texto. para ele, ser contemporâneo não é ser nostálgico, mas, sim, estabelecer uma relação de aderência e anacronismo com o próprio tempo. nesse sentido, “o poeta (...) é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera”.[iii] como escolhe Ulisses, encarar o tempo.
mas outros textos nos acompanharam ao longo dessa tentativa de compreensão do que significa escrever contemporâneo. em uma pequena antologia, Marcelo reuniu poemas de diversos autores de diferentes épocas que propõem releituras da figura de Ulisses. gostaria de fazer o exercício, aqui, de pensá-los como imagens que ampliam aspectos de algum modo já presentes na narrativa homérica e também se transformam, assim, em conceitos. além dos textos de poetas já consagrados, também os poemas produzidos pelos alunos e alunas da desvio conduziram, cada qual a seu modo, um mergulho nas discussões que surgiram ao longo do módulo. gostaria de pensar alguns deles, aqui, como exercícios entre a familiaridade e a não familiaridade, sobretudo com a casa. como no Ulisses de Barbara Cassin, exercícios de um reconhecimento que só pode vir depois de um período de desconhecimento.
I. “de nada serve a um rei ficar inerte”: o Ulisses de Lorde Alfred Tennyson[iv]
é esse o primeiro verso do poema de Tennyson homônimo ao herói da Odisseia. nele, quem fala é o próprio Ulisses, mas já restabelecido em Ítaca. um rei velho, e como é possível perceber, nostálgico não de casa, mas dos tempos gloriosos das viagens. é curioso, porque esse verso inicial de algum modo já condensa o que virá no resto do poema: a inquietação com a posição de estabilidade ocupada pelos reis (“No lar quieto, em meio à rocha infértil,/ Unido à esposa idosa, eu doo e imponho/ Iníquas leis a um bando de selvagens”); o desejo de deslocamento (“Que tolice o parar, o dar um fim,/ Enferrujar assim, sem uso e brilho!”); a ideia paradoxal de que é em movimento, em viagem, que se adquire alguma realeza, alguma nobreza (“A morte é o fim: mas antes, algum feito/ Notório e nobre está por se fazer,/ Sem impróprios conflitos com os Deuses”).
pela releitura de Ulisses feita por Tennyson, é possível entender por que Cassin descreve a Odisseia como “a viagem mítica por excelência”. é por meio da figura de Ulisses que o poeta inglês expande a noção de que importante mesmo é a viagem, a jornada. só assim, pelo mundo, que se vive plenamente. tomando emprestado e parafraseando dois versos de outro poeta da antologia montada por Marcelo, Konstantinos Kaváfis, o que Ítaca nos dá é a bela viagem. por isso, façamos votos para que seja longo o caminho.[v] mais do que o dia, propriamente, do retorno, o “ainda não”, como também vai sinalizar Cassin.
II. “sem o ghostwriter até parece verdade”: o Ulisses de Luiza Romão[vi]
é esse o último verso do poema de Luiza Romão homônimo ao herói da Odisseia. nele, quem fala de Ulisses é um eu lírico que questiona, através da ironia, os grandes feitos do personagem homérico (“olha ele o grandioso/ olha ele as façanhas”), dando a entender que o herói não passa de um trapaceiro. o verso transcrito, além de sintetizar a ideia de uma voz enganosa e fantasmagórica por trás da narrativa heroica da Odisseia, quem sabe representada por Homero, confere contemporaneidade ao problema das grandes epopeias. ao revisitá-las, como o faz Romão, podemos perceber que o que sabemos são as histórias dos vencedores, e sobre elas é preciso lançar um olhar de dúvida (“quem mais calaria sirenes? sem trapaça haveria vitória?”).
por meio da releitura de Ulisses feita por Luiza Romão, observamos uma forte tendência da contemporaneidade, quem sabe um conceito: repensar as narrativas fundantes do Ocidente, tendo sempre em mente que elas assim não permaneceriam sem o apagamento das histórias de quem foi massacrado. isto é, sem uma voz fantasmagórica que distorça os fatos, estendendo um tapete de glórias para que os supostos heróis caminhem sobre os corpos e trapaças que executaram. sem um ghostwriter. talvez seja nesse gesto de releitura que o século-fera de Osip Mandel’stam, com o dorso quebrado e o rosto demente, tente se virar para trás e contemplar as próprias pegadas. não há espaço para nostalgias, nem de casa, nem da viagem.
III. o dia do retorno[vii]
depois da viagem, pelas águas míticas ou do tempo, chegamos em casa. é chegado o dia do retorno. nos dois exercícios de escrita que Marcelo passou em aula, havia instruções que envolviam o espaço doméstico: “descreva a própria casa”; “essa semana, ao voltar para casa (...), anote três coisas que aconteceram pelo caminho”; “ande pela casa e repare nas suas cicatrizes, marcas que poderiam ser utilizadas para um reconhecimento futuro, depois de uma longa ausência”. escrever como quem regressa à casa. o espaço doméstico é das coisas mais familiares que temos. para o bem e para o mal. como também o é nosso próprio tempo. e embora se pense o contrário, não é fácil falar do que nos é familiar. ainda mais em poesia. por isso, é preciso tomar alguma distância – de cem anos ou de uma tarde.
“nesta casa cometem-se atentados”. é este o sétimo verso do poema “Nemo”, de Felipe Crespo, produzido no segundo módulo da desvio. com ele, vemos o espaço doméstico como uma zona de perigo, mas ao mesmo tempo há algo de familiar nisso, se avançarmos em direção ao verso seguinte, “o sangue é navegável como sêmen”. o perigo, o sangue, tem algum parentesco com o período pré-vida pelo qual todos nós passamos. essa relação entre o perigoso e o familiar aparece também na primeira estrofe do poema: “de cem em cem anos/ voltamos pra mesma ilha/ sérios como saímos/ o som da primeira sílaba/ preso entre a glote e a língua/ jogados ao jogo de sempre”. o quarto e o quinto verso dessa estrofe anunciam a sensação de asfixia, que por sua vez só vai aparecer, assim, literalmente, no último verso do poema. a falta de ar produzida pela casa, com “redes de pesca/ em todas as janelas”, uma espécie de aquário, é uma falta de ar também pela linguagem, uma das coisas que nos identifica enquanto humanos. outra familiaridade. o jogo é o mesmo de sempre. mas só se pode perceber tudo isso depois de um século de ausência.
“um século depois, ou uma tarde”, repito, para trazer o verso de outro poema escrito a partir dos exercícios propostos por Marcelo. dessa vez, de Pedro Veloso. nele, não é que o tempo não importe. não se trata de um “tanto faz”. o que parece acontecer é que a passagem das horas, dos anos, se confunde com as inestimáveis transformações sofridas pela casa: “tempo espaço/ a mesma coisa”. o poema de Pedro não só é endereçado, como é um convite para que nós, eu, você ou o outro do poema, observemos a casa junto ao eu lírico: “senta aqui, comigo/ vem olhar este buraco/ e repara como a água desce/ em gotas, pode provar se quiser/ mas fica aqui, em silêncio, do meu lado/ vamos olhar o buraco até virar pedra de novo”. o tempo da intimidade é o tempo que um buraco leva para se tornar pedra de novo. um tempo impossível, talvez. algo que só se percebe quando se volta e olha de novo “a infiltração [que] dissolveu a pintura/ as samambaias [que] engoliram o pátio”. quando se reconhece a casa até torná-la irreconhecível.
até torná-la um lugar indiscernível. o verso das samambaias que engolem o pátio, do poema de Pedro Veloso, faz com que percebamos a casa como um espaço de indistinção entre as coisas. in