Em 1974, a poeta portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007) reuniu seus livros publicados até então e deu o título de O texto de Joan Zorro. Todos seus poemas estavam agora sob esse título. Um título que, de alguma forma, transferia a autoria dos poemas dela para Joan Zorro.
Joan Zorro foi um trovador galego-português do século XIII que compôs cantigas medievais. Poucas delas sobraram. Uma das mais famosas é a que tem como primeiros versos “En Lixboa sobrelo mar / barcas novas mandei lavrar.”
Sabemos que os primeiros registros históricos do que veio a ser a língua portuguesa são justamente cantigas medievais como essa, compostas oralmente em galego-português e só mais tarde transcritas.
Como pode uma poeta contemporânea transferir a autoria dos seus poemas para um poeta trovador mais velho do que ela em quase setecentos anos?
Um dos primeiros poemas de Fiama do seu livro Barcas novas (de 1967 e também reunido em O texto de Joan Zorro) é a reescrita da famosa cantiga de Zorro citada há pouco. Os dois primeiros versos do poema de Fiama são: “Lisboa tem barcas / agora lavradas de armas.”
Costuma-se ler a cantiga de Zorro (séc. XIII) como prenúncio remoto e simbólico da futura expansão marítima e colonial portuguesa (séc. XV). Quando Fiama escreve seu texto em 1967, quase setecentos anos depois da cantiga, escreve-o ao mesmo tempo durante o salazarismo (o fascismo português) e a guerra colonial portuguesa na África.
Neste novo poema, ela insere a palavra “armas”. Faz isso para alterar a leitura da história: contaminar o presente, mas também, a partir do presente, mudar o passado de lugar. Afinal, a poeta sabe que o passado está em constante construção e disputa.
E tal alteração se dá principalmente porque Fiama joga com a materialidade histórica da língua. Língua com seus afetos, violências e feridas. A poeta sabe que quem fala num poema é justamente esta língua de palavras que há setecentos anos vão sendo ditas, cantadas, escritas. Palavras que servem para amar, mas também para dominar e resistir a essa mesma dominação.
O texto de Joan Zorro não só é o título da poesia reunida (até aquele momento) da autora, mas também o nome de um poema seu. Acho que vale a leitura dele na íntegra:
Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos
a joan zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente.
Este poema é um dos mais especiais que conheço sobre a espessura do tempo na poesia. “O progresso dos textos / é epigráfico”: não parece ter a ver com ir para a frente nem para trás no tempo, mas sim parece ter a ver com fazer coincidir ou fazer chocar temporalidades. “Lápide e versão, indistintamente.”
Movimento parecido com esse foi feito por Drummond no seu famoso poema “A máquina do mundo”, de 1951. Ao retomar a mesma máquina do final d’Os Lusíadas, o poeta mineiro muda Camões de lugar.
Porque se a máquina do mundo no poema renascentista apontava para uma crença na confiança e no conhecimento humano, esse projeto já não faz mais muito sentido depois de tanta destruição que esse mesmo conhecimento produziu, ainda mais depois de duas bombas atômicas lançadas logo antes do tempo em que Drummond escreve seu poema.
É por isso que sua versão é cabisbaixa, descrente de que esse tipo de humanismo (expansionista e desenvolvimentista, por exemplo) possa nos levar a algum lugar.
T.S. Eliot disse, em “Tradição e talento individual”, que o passado deve ser modificado pelo presente. Já Walter Benjamin, poucos anos depois, em “Sobre o conceito de história”, escreveu que “tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” Ambos os autores falam sobre um tempo presente que dá sentido ao tempo passado e esse sentido nunca está definitivamente fixado.
Assim, Fiama pode “influenciar” Joan Zorro, e Drummond pode fazer o mesmo com Camões. Isso acontece porque nossa leitura do poema de Fiama age sobre nossa leitura da cantiga de Zorro, assim como nossa leitura do poema de Drummond age sobre nossa leitura do poema de Camões.
Em 1976, Adélia Prado fez o mesmo com Drummond. O poema dela “Com licença poética” desloca o “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos, ser gauche na vida” se choca com “Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.” Essa mudança, entre outras, introduz algumas desestabilizações na nossa leitura dos versos de Drummond. Entre elas, apresenta o gênero do texto dele como masculino, o que abre possibilidades.
As portuguesas Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Adília Lopes também realizam algo do tipo, quando convocam a tradição flagrando-a como masculina para transformá-la criticamente.
Enfim, autores e autoras assim escrevem não só na língua, mas com a língua; agem deliberadamente sobre o sentido histórico dela. Fazem isso não para corroborar com tal sentido, e sim para alterá-lo.
Não sei onde foi, mas uma vez li que o horizonte do poeta é desaparecer na língua. E isso não parecia ser um elogio à despersonalização.
“Vou-me embora para Pasárgada / porque lá sou amigo do rei”; “No meio do caminho tinha uma pedra”; “E agora, José?”: trechos que entraram para a língua como expressões.
As obras de Bandeira e Drummond, por exemplo, foram escritas na língua portuguesa, só que alguns de seus versos, além de terem sido escritos na língua, passaram a coincidir inteiramente com ela. Isto é, não dependem mais do nome do autor, funcionam como saber anônimo e fazem falar.
Este é o sinal radical de que algo passou a vibrar diferente. O poeta se fundiu com língua, desapareceu nela.
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