por Rafael Zacca
A pergunta me acompanha desde que comecei a dar oficinas, em 2013. Lembro-me de uma conversa animada com uma amiga da faculdade de filosofia (que mudou de ideia depois de ter lido o Mestre ignorante de Jacques Rancière) em que ela me confrontava com a impossibilidade do ensino das artes. Não se ensina o demônio da escrita: ou a pessoa nasce com ele ou não nasce.
Argumento semelhante a outro, que tive de enfrentar em 2018, quando comecei a dar oficinas no Coart da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e fui confrontado por uma aluna psicóloga que, apesar de ter se inscrito na oficina, insistia comigo que o ensino de escrita de poesia era uma espécie de engodo. E ainda hoje recebo perguntas desse tipo: dá mesmo pra ensinar alguém a ser poeta?
Em quase todas as ocasiões em que fui questionado sobre isso, tanto por amigos e amigas quanto por pessoas que tinham aula comigo, que eram poetas, editoras ou críticas da cena literária, percebia uma discussão de pano de fundo. Um imbróglio que não necessariamente vem à tona, que não mostra a cara, e que, no entanto, podemos explicitar.
Refiro-me a um duplo entendimento do que seria a poesia. Uma espécie de ramificação em dois caminhos aparentemente opostos na compreensão dessa ação humana de manifestação verbal.
Ele pode ser recolocado em forma de uma série de perguntas: em que medida a poesia é um ofício e em que medida ela é expressão? Em que medida o poema é resultado de uma técnica e em que medida ele se produz como um efeito colateral do desejo? Em que medida o poema é uma coisa fabricada e em que medida ele compartilha conosco algo de nosso sopro vital, de nossa alma ou psiquê?
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O caminho bifurcado remete a dois textos da tradição ocidental que servem de pré-história e arquétipo dessas posições.
O Íon de Platão fala da poesia como de um sopro. O aedo Íon não sabe o que faz – ou ao menos é o que Sócrates tenta explicar no fim do diálogo platônico. Seu feito, sua recitação, assim como o feito do poeta, o poema, vêm do sopro da musa. A inspiração divina leva palavras aladas (em Homero as palavras voam) desde a deusa até o poeta, que a repassa num sopro ao aedo que a recita para o público. Modernamente, a inspiração se converteu em experiência, desejo, vida: é a vida do poeta que lhe sopra a sua poesia.
E a Poética de Aristóteles, bem como a Retórica, que colocam as artes miméticas verbais, o conjunto da poesia, como o resultado de um conjunto de técnicas. Ainda que não haja uma defesa explícita da poesia enquanto técnica, a tradição de leitura desses textos legou aos eruditos e à tradição formalista a concepção da composição poética como um conjunto de operações técnicas com a palavra que resultariam num produto, numa coisa, com valor específico e inestimável: o poema. Modernamente, não se trata mais de conceber quais são as leis adequadas a este ou àquele gênero poético, como a tragédia ou a epopeia, mas se consolidaram algumas tradições de recursos técnicos que balizam a prática da poesia, desde os manuais métricos (ou de Versificação – o mais famoso em português brasileiro talvez seja o de Bilac) até conceitos operativos como melopeia, logopeia e fanopeia (Pound) ou enjambement (muito popularizado por aqui depois da tradução de Ideia de Prosa de Agamben).
Esses caminhos se bifurcam em escolas que aprendemos a dicotomizar em nossas narrativas do século XX. Uma das mais recentes é aquela que opõe a poesia marginal à poesia concreta.
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“Menino de Engenho”, de João Cabral de Melo Neto, publicado em A escola das facas (1980), nos apresenta um rapaz e uma foice vinculados pelo corte. “A cana cortada é uma foice.” Uma vez recebido o corte da lâmina, torna-se, ela mesma, uma arma branca, que fere o poeta em sua infância. “Menino, o gume de uma cana / cortou-me ao quase de cegar-me.” O poeta ganha então uma cicatriz não aparente, que não se verifica em sua pele, mas que se intui por dentro.
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina
O “ou” do último verso é um truque. O verso induz você a fazer uma escolha, mas realiza, na verdade, uma operação de adição. A cicatriz é phármakon. Vírus e vacina. Contaminação e cura.
Ou (e este “ou” é um “e”), em outras palavras, a cicatriz é, ao mesmo tempo, memória e instrumento de corte. É por ter-se cortado que o poeta pode agora ferir com palavras a carne da realidade. O poema, então, é quase um complemento materialista a outro texto, mais famoso e mais metafísico, de João Cabral, intitulado “Uma faca só lâmina” (1955). Lá se lê que, para quem trabalha com palavras (isto é, para quem é poeta),
somente essa faca [que lhe corta]
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente [isto é, a palavra gasta e sem corte]
o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,
mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.
O poeta que foi cortado ganha um corte. No duplo sentido desse ganho. A cicatriz é um negativo, memória de lâmina. Mas é, ela mesma, uma negatividade que corta – uma lâmina de nada. E que produz mais corte. Uma lâmina positiva, se vista do ponto de vista do nada.
Essa negatividade-positividade da cicatriz-lâmina nos fala também de um desejo de escrita. É a sua falta inoculada como cicatriz que induz à busca, ao desejo, ao demônio, ao eros da poesia.
Ora, se cito estes poemas de João Cabral e o que eles parecem evocar do nada, da falta e do desejo que o poeta coloca em cena (o gosto do deserto é também a imagem da cicatriz como faca, um nada que nadifica), é porque João Cabral é uma espécie de nó cego na história da reflexão sobre a poesia, essa atividade humana criadora que demanda técnica e alguma relação com a vida.
Fala-se de João Cabral como de um poeta que eliminou o problema da inspiração (e portanto da alma) na composição. Uma breve leitura da conferência “Poesia e composição” ou do poema “Catar feijão” serve de prova.
E no entanto aqui está o poeta, fundamentando a criação poética tanto na sua experiência (a memória em que ganha o corte da cana, com o qual escreve) quanto no seu desejo, na sua fome, que aprende com a técnica (do corte).
Isso se ensina?
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Mas o que é ensinar? Há um conterrâneo e contemporâneo de João Cabral que nos ajuda a repensar a escola e uma escola da palavra. Não escreveu poemas como os de Escola das facas, mas pensou uma Educação como prática da liberdade e uma Pedagogia da autonomia que têm, como fundamento do processo de aprendizagem, a agência de quem aprende e de sua forma de se comunicar.
É na experiência e nas técnicas de linguagem do educando ou da educanda que o pernambucano Paulo Freire vislumbra toda a possibilidade de aprendizado nas relações de ensino. Como alfabetizador, eliminou as cartilhas pré-formuladas com frases como “Ivo viu a uva”, para confeccionar dinâmicas de fala, escuta, leitura e escrita a partir da vida daqueles a quem alfabetizava.
A palavra tijolo morava em quem o usava na construção; a palavra feijão, em quem o plantava; a palavra cana, em quem a roçava; a palavra peixe, em quem o pescava. Era num tal materialismo da poesia (isto é, da arte verbal) que pensava Haroldo de Campos quando escreveu:
a flor flore
o colibri colibrisa
a poesia poesia
O que era ensino, então, e não apenas no âmbito da alfabetização, para Paulo Freire? Para o professor e filósofo, ensinar não deveria significar uma transmissão de conteúdos. Essa educação, que considera o aluno uma espécie de tábula rasa a ser preenchida pelo conhecimento do professor, é chamada, por ele, de educação bancária. O professor, compreendido como sujeito do conhecimento, transfere seus capitais para a conta do aluno, ao mesmo tempo objeto do processo de ensino-aprendizagem e carente de quaisquer saberes.
Ao contrário, Paulo Freire propõe outra educação: uma educação libertadora que considera que o aluno e a aluna são sujeitos de seu conhecimento, o que quer dizer que é a partir de seus próprios saberes e desejos, que se manifestam como linguagem, que o conhecimento será não transferido, mas construído nesse processo.
Se o saber for uma transmissão, então não, não dá para ensinar poesia.
*
Mas se o saber for uma experiência, sim.
E agora voltamos a estacionar na vereda em que estávamos no início de nosso caminho: se a poesia pode ser concebida de duas formas, como um conjunto de técnicas e como uma experiência de mundo, como um saber-fazer e como um saber-viver, como um dar-forma e como um receber-forma, então, em que sentido se pode ensinar? No sentido em que concebemos a poesia enquanto técnica, ou no da poesia como um modo de vida?
Ambos. Um processo de ensino-aprendizagem em poesia não é aquele que dará ao educando ou à educanda um conjunto de técnicas mínimas para que ele ou ela se tornem poetas. Uma espécie de abecedário mínimo sem o qual não se poderia, em tese, escrever. Um processo de ensino-aprendizagem em poesia não fará, tampouco, com que ele ou ela viva esta ou aquela experiência necessária para fabricar a persona poeta.
O que a oficina pode fazer é, em primeiro lugar, oferecer um ouvido. Ativar um processo de escuta dentro do qual quem aprende pode falar. Essa é a condição mínima para um tal ensino. É a partir da escuta de um desejo de escrita, de um eros da poesia de quem quer aprender, que se pode ensinar. Porque o demônio da poesia não é um ser que nos habita: é algo que nos falta.
E o que é ensinar? Devolver essa escuta e essa falta.
Essa devolução será o que a experiência desse professor ou professora puder devolver na colaboração com o processo do desejo de quem aprende. Como isso se manifesta? De duas maneiras.
Em primeiro lugar, pode-se retornar com sugestões de relações a serem estabelecidas com a tradição da poesia. O que ler, como ler, como se relacionar com essas leituras, e como essa escrita – única em cada um e ainda por vir no educando ou na educanda, tanto quanto no educador ou na educadora – pode entrar em um processo desejante com essa tradição (composta tanto por um outrora da poesia quanto pelo seu agora).
Em segundo lugar, com um pequeno manejo desse desejo: desobstrução dos caminhos da pulsão. O setting analítico teria muito a nos ensinar a esse respeito. A experiência da transferência descrita por Freud e por Lacan podem nos ajudar a superar o ideal da educação bancária.
Dito de outro modo, o que uma oficina pode fazer é ajudar aquele ou aquela que deseja escrever a encontrar a sua cicatriz. João Cabral ganhou a sua no engenho. E com ela soube fazer um encontro sem precedentes entre técnica e alma. Soube encontrar o seu phármakon, preservando a sua dimensão de mistério.
Como se ensina a ser poeta? Fazendo com que a pessoa se ensine a si mesma. Substituindo aos poucos a figura do professor suposto saber pela figura do phármakon. Dele, da ideia de um inoculado, chegará, aos poucos, a si mesma: um nada que nadifica. Seu nada nadificante construirá suas imagens e o público chamará a isso de poeta.
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