Conto para o meu amigo de 88 que uma amiga em comum, de 94, está sem vontade de escrever. Ele, cujos comentários são sempre enviesados, nada óbvios, faz uma relação inesperada entre idade e escrita, dizendo que tem um momento em que a gente não fala mais a língua do presente e aí fica impossível escrever ficção. O que ele diz me deixa intrigada. Como meu amigo é um sábio heterodoxo, chego em casa e anoto: guardo comigo para colocar à prova no futuro, inclusive, quem sabe, com as ficções de nossa amiga em comum, pensando se precisariam de uma escuta que hoje ficou mais longe para ela, porque sai pouco na rua. Seria disso que ele estava falando?
Quando Roland Barthes diz que a língua “é simplesmente: fascista”, ele está pensando no objeto da linguística pela qual se apaixonou, com suas fixações estruturais, cujo jogo de cintura depende das intervenções poéticas que abalam esse sistema. É sobre isso que ele quer falar e a frase talvez seja uma desculpa para declarar seu amor pela literatura. “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”, ele escreveu na sua Aula, na tradução de Leyla Perrone-Moisés.
Autoras e autores escrevem em várias línguas ao mesmo tempo, contaminando e contrariando “a língua”, que a gente aprende como se fosse um sistema bastante estático e homogêneo. Fiquei pensando nisso enquanto lia dois livros escritos a partir do aprendizado de línguas estrangeiras: La interlengua (Blatt & Ríos, 2023), de Monica Zwaig, e El hechizo del verano (Sigilo, 2024), de Virginia Higa.
Na orelha do livro da Monica lemos que ela nasceu na França, em 1981, e se criou por lá. E que aos 26 anos viajou para a Argentina e por lá ficou. Esse é seu segundo romance, depois de Una família bajo la nieve (2021). Pesquisando um pouco (por exemplo, aqui: https://youtu.be/3vnKREscorA?si=V-pxSeCqHgP3YXvb), ficamos sabendo que ela é advogada de formação, filha de um casal argentino exilado por causa da ditadura, que em 2008 viajou para o país dos seus pais – do qual não conhecia quase nada, porque em casa quase nada se falava sobre essa história – para fazer uma pesquisa sobre os julgamentos de crimes de lesa-humanidade.
“Quando cheguei a Buenos Aires faz dez anos, não me inscrevi em nenhum curso para aprender espanhol. Várias vezes quis fazer isso, mas as pessoas do meu entorno me diziam que eu não precisava, que ia aprender aos poucos e rápido, graças à imersão na cultura argentina [...] As pessoas do meu entorno pensavam que eu ia aprender rápido o espanhol e não seria difícil porque não era um idioma totalmente estrangeiro para mim. Era uma língua que eu tinha escutado na minha infância, quando meus pais ainda discutiam na mesma língua em que tinham se apaixonado”.
Traduzo do livro da Monica, que não conta a história desse passado argentino que a fez voltar, porque conta a do presente: uma garota que diante dos dilemas de viver entre duas línguas – o espanhol e o francês – decide incluir entre elas uma “interlíngua”, termo deslocado da linguística que o usa para se referir a uma língua de passagem quando se está aprendendo uma língua estrangeira, sendo que aqui se tratará de uma terceira língua: o italiano. O livro é composto das cenas no curso que ela está fazendo e com o namorado argentino, Mario, intercaladas com lembranças sobre a experiência de imersão na língua que acabou se tornando a da sua escrita ficcional.
“Eu sei que minha língua materna é o espanhol porque minha mãe falava comigo nesse idioma nos primeiros meses de vida, mas depois ela passou para o francês, porque já se virava melhor e para facilitar minha integração na sociedade. Não importa se seu francês estava cheio de erros e com sotaque. Minha língua materna foi uma língua desenraizada, uma língua partida, uma língua interrompida. A língua que você não entende existe mesmo assim, é preciso levá-la em conta. A língua materna é a que a gente ouve assim que nasce ou também é preciso saber esse idioma? É possível ter dois idiomas maternos por mais que não se entenda os dois? Ter duas línguas, uma que entende e outra que não, é também ser bilíngue. Não sabia com que falar sobre tudo isso”. La interlengua é um jeito de falar sobre isso, mesmo sem dar respostas. Eu acrescentaria a essa série uma pergunta que gostaria de fazer à Monica, sobre sua língua de escrita. Será que ela escreve o livro em espanhol porque essa é sua língua do presente?
O livro de Virginia Higa é, por assim dizer, a viagem no sentido contrário. Virginia nasceu na cidade de Bahía Blanca, na Argentina, em 1983, e este é também o seu segundo livro, depois do romance Los sorrentinos (2018). El hechizo del verano começa com uma “Nota da autora” que explica o seguinte: “Em 2017, eu me mudei para Estocolmo com o meu companheiro, Federico, a partir de uma oferta de trabalho que ele recebeu como pesquisador científico. No outono de 2019, nosso filho nasceu. As crônicas que se seguem foram escritas durante esses anos e, embora falem de temas diversos, têm como pano de fundo a experiência da vida na Suécia”.
Queria falar sobre a escolha de chamar de “crônicas” esses textos, mas depois de traduzir esse trecho preciso falar sobre o termo pareja, que traduzi como “companheiro”, porque me parece que no contexto brasileiro, hoje, esse seria o termo escolhido por Virginia, ao invés de “marido” ou “namorado” ou “parceiro”, mas nenhum deles – eu poderia explicar isso a ela – traria o sentido que é dado pelo dicionário da língua espanhola: “Cada uma das pessoas, animais ou coisas que formam uma pareja, considerada em relação com a outra”. Ou seja: nessa língua, a palavra “casal”, que nela é feminina, pode ser usada para nomear cada um dos membros do casal. Se isso existisse em português, eu poderia ter escrito “eu me mudei para Estocolmo com o meu casal”, mas não exatamente, porque, como disse, pareja é um substantivo feminino. Como não lembrar de Barthes e sua declaração sobre a língua?
O texto que abre o livro da Virginia se chama “Sobre a língua sueca” e é o mais longo do volume, seguido do que trata sobre aprender a patinar, colocado bem no meio. Aprender uma língua estrangeira e aprender uma atividade física podem ter bastante em comum na idade adulta: o medo, a vergonha, a euforia. Nos dois textos, a passagem do tempo se torna central, porque é a mudança das estações, na sua radical diferença para alguém que vem da Argentina, que vai guiando as duas aprendizagens. “A chegada da primavera é igual todos os anos, mas nunca é banal. A vida tem dois momentos muito claros: os meses de luz e os meses de escuridão. E, para sobreviver, é preciso esquecer. Os suecos treinam sua memória numa espécie de amnésia estacional”. E o tema do esquecimento aparece também no texto sobre a patinação: “Fico me perguntando se o meu corpo lembrará alguma coisa disso tudo da próxima vez que eu colocar uns patins, se o suor frio voltará ou se meus pés saberão que é preciso se descolar do chão para poder avançar”.
A patinação é o “feitiço do inverno”, mas o texto que dá título ao livro é sobre Manuel Puig, mestre da interlíngua, cujas cartas, compiladas por Graciela Goldchluk em dois volumes, com o título Querida familia, a autora lê “como método contra a nostalgia e a tristeza que paira sobre as coisas com a chegada do outono”. Puig ficou em Estocolmo de maio a setembro de 1959, da primavera até o final do verão, com 26 anos. Em busca de uma voz, num “momento de transição”, foi nessa cidade “onde ele começou a se sentir confortável com sua própria escrita”, diz Virginia. Já Graciela, em seu prólogo, diz que “Puig se sentirá estrangeiro em todos os idiomas”. Encontrar a voz será perder a língua, na contramão de quem busca nela um porto seguro. Daí o feitiço de Puig. E a alegria de fazer passado e presente coincidirem, com 62 anos de diferença, quando numa noite de maio, admirando o pôr do sol de Estocolmo pela janela, é possível tornar suas as palavras dele: “Uma coisa notável daqui são os céus, de noite nunca fica totalmente escuro e às duas da manhã já tem uma penumbra linda, uma luz azulada que eu nunca tinha visto”.
Paloma Vidal para nomes próprios
(tentei comentar mas não sei se entrou, desculpem se ficar repetido) Sabe de que eu lembrei? Do uso que fazemos da palavra "par". Lembrei da maravilhosa Beth Carvalho cantando em Andança "Por onde for quero ser seu par" .