A fibra mais íntima
- Paloma Vidal
- 11 de mar.
- 5 min de leitura

para Flávia Péret
Comecei a pensar a frase de outro jeito traduzindo César Aira. Essa frase mesma que acabei de escrever me faz pensar de novo nas frases dele, nas suas inversões e condensações, no seu movimento preciso, que usa ao seu favor as condições do idioma argentino. Entendi que a literatura de Aira é pensante por causa do que ela faz com a frase. Como Pierre Alferi condensa performativamente, na tradução de Inês Oseki-Dépré, “Pensar significa: procurar uma frase”. Quando li no Parmênides de Aira que “la vida se le iba en pensarla”, me veio uma emoção que se repete a cada vez que repito essa frase. Fiquei horas olhando para ela, dizendo-a em voz alta, jogando-a para o alto como um balão – a vida que vai embora, a fixação no pensamento.
“Finalmente, portanto, não se viveu nem se escreveu”, escreve Blanchot (maravilhoso frasista, traduzido por Leyla Perrone-Moisés) sobre o diário íntimo. Já Barthes, embora duvidasse também dos diários, imaginava-os como “oficina de frases”: “não de ‘belas’ frases, mas de frases certas” (e aqui “certo” é “juste”, e mais um problema de tradução...). E chamava esse motivo para manter um diário de “amoroso”. Contra a vida que se perde enquanto pensamos nela, uma oficina amorosa de frases, à qual nos dedicamos como quem não quer nada, testando, tal a ressalva quase necessária que cada participante de uma oficina faz antes de ler seu texto: não gostei muito, não sei muito bem se era isso mesmo, ainda estou trabalhando nele... mas aqui vai, mesmo assim.
“Martín faz cada movimento como um percussionista da linguagem. Se o ritmo não combina, o sinal não sai, então o ritmo de Martín é milimétrico. Ele move o espaço e, ao fazer isso, move mais do que o espaço, move sua existência”. Traduzo do livro Diario de una aprendiz de señas, de Tania Dick, lançado em março do ano passado pela editora argentina Bosque Energético, que surgiu em 2022, entre Buenos Aires e Miramar, e se dedica a publicar diários íntimos. Foi a poeta Laura Wittner que me indicou o livro de Tania, que faz oficinas com ela há alguns anos.
O diário começa logo antes da primeira aula, quando Tania decide se inscrever em um Curso de Língua de Sinais. “Eu me inscrevo num movimento, seguindo algo que se desdobra, mas que não entendo por completo: o impulso de nomear as coisas de novo”. O diário seguirá esse impulso que significa encontrar frases para nomear o movimento do corpo se tornando língua no espaço. Na primeira aula, de 10 de março, as frases curtas formam parágrafos de uma, duas, três linhas: “Olho suas mãos, mas ainda vejo plano”. Frases curtas serão necessárias para nomear o silêncio e o desconcerto, mas sobretudo a atenção. A atenção se escreve através da pausa:
“Martín extrai um gesto característico que eu repito, sem perceber. E marca com sua mão o movimento que faço quando ajeito meu cabelo. Me mostra. Me explica que esse vai ser meu nome. E me nomeia assim. Me nomeia em movimento. A partir de agora esse é meu nome nas aulas e no mundo. Tenho um nome de ar e de ritmo.”
Um diário de um aprendizado é necessariamente um diário que se exterioriza. Martín e Tania fazem uma pequena excursão até a praça perto do curso para olhar coisas novas ao ar livre. “Algumas pessoas nos olham intrigadas. Nos olham sem disfarçar. Nos olham querendo apanhar o que passa diante dos seus olhos e elas não conhecem. Nos olham notando que eu ouço. E que Martín não ouve. Nos olham para ver mais”. Tania reconhece esse olhar e esse desejo, mas a essa altura, com quatro meses de curso, seu olhar já se transformou, ela está em algum lugar entre esses olhares, em trânsito entre tudo o que já aprendeu a ver e o olhar de Martín, que “conhece as estradas do ar”.
Em algum momento desse caminho, Tania começa a aprender a contar histórias: “para poder contar histórias é preciso ampliar alguns sinais, suavizar outros, mexer os olhos mais tempo”. Martín começa a contar uma história: “Dá para ouvir os sinais. Num silêncio diferente, num espaço novo, são os mesmos sinais, mas são outros”. Tania tem que preparar uma história para apresentar na prova final do curso. Ela explica que para se organizar escreve o que está preparando. E depois acrescenta, em uma frase solta: “Escrevo para que no ar soe o sentido das coisas”. É uma frase linda e misteriosa. Que nos aproxima de algo que este diário está querendo fazer, entre a escrita, o ar, o som e o sentido das coisas.
Conversando com Eugenia Pérez Tomas, editora de Bosque Energético, ela me diz alguma coisa sobre se aproximar da fibra mais íntima – e como seu trabalho é ajudar a fazer isso nos diários que edita. Penso que em Diario de una aprendiz de señas essa fibra passa pela relação entre Martín y Tania. “Martín ergue suas mãos. Me pergunta como está indo minha preparação. Olho para ele. Martín sorri. Calma, ele me diz. Passa sua mão pelo peito de maneira suave e repete. Calma.” Tania diz a ele que já começou a preparar, mas que tem dúvidas em alguns sinais, então ele sugere que tirem as dúvidas naquele momento. Só que basta essa proposta para que a mente de Tania se esvazie. “Nada”, ela repete algumas vezes. Então ela faz um sinal que costuma usar nessas situações.
“É um sinal para algo do tipo:
tudo ficou nublado, não vejo mais nada, estou desorientada, fiquei para trás do que está acontecendo, estou confusa, fiquei bloqueada, me assustei.
Mas são todos esses estados e nenhum de todos esses estados.
Não tem tradução. Mas é perfeito.
As mãos se cruzam diante do rosto. As palmas olham para a frente, para o interlocutor, não lembro se a direita tem que ir na frente da esquerda ou a esquerda na frente da direita.
O rosto é uma expressão de susto, desorientação, desconcerto, e um pouco engraçado também.
A cabeça e o torso se inclinam para a linha de trás, saem do eixo e voltam. É maravilhoso!
Muitas vezes sinto exatamente esse sinal, embora não possa traduzi-lo em palavras”.
Traduzo esse trecho para chegar à frase que o encerra: “Depois que eu fizer a prova, Martín não será mais meu professor”. Enquanto traduzo sinto a necessidade de saber de que sinal ela está falando e se ele corresponde a um sinal parecido em libras. Alguém que se propusesse a traduzir o livro de Tania quem sabe fizesse esses movimentos entre o espanhol e a língua de sinais argentina, e o espanhol e o português, e o português e a língua brasileira de sinais. Traduzo e vou me aproximando do fim do livro, dessa separação anunciada e do medo que os dois têm dela. Várias páginas, e meses, antes, Tania escreve:
“Na maior parte do tempo acho que Martín e eu não nos entendemos.
Não sabemos quem somos.
Mas mesmo assim ele me espera no espaço”.
Talvez sejam essas frases encavalgadas a fibra mais íntima deste diário. Relacionando o enjambement e a frase, Alferi propõe que ele “é o índice sonoro de uma crise sintática necessária à invenção das frases”. As frases inventadas por Tania a partir dos sinais ensinados por Martín vão nos aproximando do pensamento como corpo em movimento, como uma dança, uma dança dos sentidos, “como se os sentidos se concentrassem numa mesma medida para se desdobrarem depois todos juntos e apreenderem alguma coisa, ao menos alguma coisa, do que acontece”.
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